Por Aline Souza
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É muito difícil falar disso. É muito difícil organizar o pensamento em relação à maternidade e o ato de ter filhos por “escolha”. De onde vem o desejo de ter um bebê? Por que aceitamos com tanta facilidade a maternidade compulsória e rejeitamos com tamanho cinismo as mulheres que escolheram não fazer parte disso?
Para muitas pessoas, as inúmeras renúncias da maternidade são fases difíceis de um sonho: o maternar. Para outras, significa a consumação do que encontraram ao gerir um filho: um completo pesadelo. Se está difícil aceitar que existem mulheres que se arrependem de ser mães, onde fica o acolhimento e a aceitação social para com aquelas mulheres que escolheram não ser mães em hipótese alguma?
É preciso dizer que tenho profundo agradecimento por aquela que me aceitou dento de seu corpo e desde então vem trilhando uma incrível jornada ao meu lado, me dando a mão sempre que precisei: minha mãe. Também respeito muito outras mães que seguem sendo antes de tudo mulheres encantadoras, buscando se encontrar em meio a tantas demandas, sem se perder jamais dentro de uma única: a maternidade. Precisamos desconstruir o contorno sagrado entorno dela.
A motivação pela maternagem dificilmente é genuína
Por qual motivo uma mulher decide ter um filho? Qual a real motivação disso? Em situações normais, podemos cogitar alguns motivos. Talvez continuar a espécie humana na terra (que já está bastante povoada)? Ter um ser humano para ela projetar todos os seus sonhos não realizados? Ter um ser humano talvez, com sorte, ter uma companhia ao longo da vida na esperança de amor incondicional? Conquistar alguma autoridade sobre alguém, ainda que momentânea? Fazer uso de seu órgão biológico capaz de gerar vida e se olhar no espelho com uma barriga enorme? Fazer várias fotos da barriga enorme e se lembrar disso para o resto da vida? Sentir nostalgia de um sentimento infantil e possessivo de um dia segurar um bebê que ela gerou e dizer ‘é meu’? Obter respeitabilidade social e familiar? Por competição com outras mulheres do círculo social? Sensação de dever cumprido enquanto mulher e/ou esposa?
Algumas mulheres são codependentes do ato de cuidar porque assim elas aprenderam ao longo da vida. Elas foram criadas e educadas a pensar que cuidar é tudo que elas têm a fazer, tudo que se espera delas, é o melhor a que elas servem. Essa influência invisível é sentida desde a infância, quando somos apresentadas ao mundo dos cuidados, que é majoritariamente feminino. Tanto que, hoje, nas áreas profissionais de enfermagem, psicologia, educação primária, existem majoritariamente mulheres. Enquanto os meninos brincam de super-heróis e carros, nós, mulheres, brincamos de mamãe e filhinha com as bonecas. Um problema na criação de nossas meninas.
Logo, o cuidado é um trabalho que foi sendo construído automaticamente como sendo o papel de uma mulher. Aí entramos no debate super necessário nos dias de hoje sobre a divisão desigual do trabalho doméstico nos lares das famílias, e entramos no fato irrefutável da sobrecarga feminina. As mulheres estão exaustas. Como já disse Silvia Federici, aquilo que as pessoas no geral chamam de “amor maternal”, nós devemos chamar pelo nome correto: trabalho não remunerado que alimenta o capitalismo como nós o conhecemos desde sua fase primitiva.
Há várias pesquisas realizadas que mostram isso. A mais recente se chama “Esgotadas”, realizada pela Think Olga, que apontou quase metade (45%) das mulheres entrevistadas possui um diagnóstico de ansiedade, depressão ou algum outro transtorno mental. Os sintomas são estresse, sonolência, irritabilidade, baixa autoestima, insônia e tristeza. E o que motiva geralmente é a falta de dinheiro, insatisfação com o trabalho profissional e a sobrecarga geral. Como conclusão, a pesquisa afirma: não há futuro possível se o sofrimento e o adoecimento das mulheres não forem cuidados imediatamente.
Mulheres na Islândia, o país mais seguro para ser uma mulher no mundo, com altos índices de igualdade de gênero, fizeram uma greve nacional de 24 horas no dia 24 de outubro paralisaram seus trabalhos para denunciar a diferença salarial entre os gêneros, a carga desigual de trabalho doméstico não remunerado e a violência que afeta desproporcionalmente as mulheres. O país ocupa a posição mais alta do mundo nos índices de igualdade de gênero, mas a renda média das mulheres ainda é 21% menor do que a dos homens.
Pela quinta vez em 50 anos, milhares delas saíram às ruas pela igualdade salarial. Em 1975, 90% da força de trabalho feminina da Islândia abandonou seus empregos e funções de cuidado, revelando a importância de seu trabalho, fosse ele remunerado ou não. no ano seguinte, foi aprovada uma lei que garantia direitos iguais entre homens e mulheres no país. A luta das mulheres muda o mundo! Se não está fácil para as islandesas, imagina para nós?
Gravidez forçada é tortura!
Aqui precisamos ressaltar o obsceno PL 4145/2019 que pretende, de novo, avançar, com o “Estatuto do Nascituro“, que por tantas vezes já foi derrotado pela luta feminista na última década. Desejam criminalizar todos os casos de aborto já legalizados no Brasil, TODOS, até aqueles em casos de estupro, obrigando mulheres a terem filhos que não desejam ter. O alvo também é a pílula do dia seguinte. Ou seja, gravidez forçada. E ainda não estamos na distopia completa que nos faz lembrar Gilead de “O Conto da Aia”.
Lembrando sempre que o aborto é uma realidade desde os tempos imemoriais no mundo e no Brasil não é diferente. Devemos tratar como uma questão de saúde pública e classe social, uma vez que as mulheres que podem pagar, recorrem a ótimas clínicas. As que não podem, acabam morrendo na clandestinidade.
Torna-te mãe e serás salva
A cigana que nos contou isso roubou nosso dinheiro. É importante dizer que o fato de engravidar não vai salvar uma mulher de absolutamente nada. Nem do abandono, nem da rejeição patriarcal, nem da violência doméstica, nem da relação abusiva que ela está inserida. No passado as mulheres foram obrigadas contra sua vontade a se casarem dentro de arranjos familiares onde elas eram moeda de troca.
Mas em 2023, as mulheres se metem em enrascadas até piores do que essa. Mulheres que sofrem violência doméstica durante a gestação e o puerpério são incentivadas a contornar a situação em nome da família. Isso ocorreu com 94% das mulheres que responderam ao levantamento feito pel’AzMina, o que mostra a vulnerabilidade que os períodos de gestação e puerpério representam para as pessoas que gestam.
Em muitos casos, elas tiveram a gravidez programada, desejada, os próprios parceiros pediram para que elas engravidassem. Sabemos que quando alguns homens afirmam que querem ser pais, no fundo o que eles estão dizendo é que desejam que as mulheres tenham filhos deles. São coisas bem diferentes. Em todos os casos, as agressões tendem a se intensificar após a gravidez. E o pior é que a maioria dessas mulheres não se consideram vítimas, mesmo sendo punidas por não preparar o jantar, não lavar a roupa da casa, não cumprir com seus “deveres” domésticos.
Inseguras dentro de casa. Inseguras fora de casa. A maioria delas não recebem apoio ao fazerem qualquer denúncia das agressões. As próprias famílias dessas mulheres, quando existem, são coniventes e muitas delas perdem o emprego após a gestação. Elas são empurradas para o lugar de “heroínas“, enquanto o comportamento dos parceiros é justificado pela “dificuldade de adaptação à paternidade”. Mas algumas mulheres não são empurradas. Elas se colocam nesse papel por livre e espontânea vontade.
Heroínas e quase Santas
É sobre esse lugar de “heroínas” que algumas mulheres se colocam após se tornarem mães que eu gostaria de falar. Não sobre as mães que sofreram esses abusos ou que foram “convencidas” pela sociedade a ter filho de homens abusivos. Mas daquelas mulheres cuja maternidade é vivenciada como uma redenção pessoal, algo que vai torná-las seres humanos melhores automaticamente, espécie de unção capaz de alçá-las a um local de sacralização da sua existência enquanto mulher, e, portanto, colocando o mundo todo em dívida com elas.
Às vezes tenho o hábito de ouvir mulheres-mães ao meu redor e observei que existe entre algumas delas uma constante. Elas saem para conversar, beber um drink ou almoçar e só reclamam do fato de serem mães. Reclamam das tarefas com os filhos, do dinheiro que está curto, do menino que não desmama, da menina que é carente o tempo todo, de não conseguir ver um filme (apenas desenho animado), de não fazer sexo, de lavar a louça, de “ter que” isso e “ter que” aquilo. São muitas demandas para essas mães que escolheram ter filhos, no plural. Sim, porque não satisfeitas com um, algumas delas tiveram mais filhos. E agora a vida delas é “desabafar” sobre a vida sofrida. Tão coitadinhas.
Então, apenas elas precisam lavar louça? São as únicas que não transam há meses? São as únicas representantes da estafa mental que é ser mulher no mundo? Apenas elas estão com o dinheiro curto? Ou indecisas sobre qual caminho tomar para tentar ter um futuro profissional digno? Infelizmente a resposta é não. Sou a prova viva de que há outras representantes do gênero feminino que também sofrem com inúmeros afazeres e demandas. A pia da minha casa não será limpa sozinha.
Ninguém “tem que” nada. Ainda que não saibam, eu gostaria de lhes dizer que a maternidade foi uma escolha de vocês. Conscientes disso ou não. A maternidade compulsória consiste na prática de culturas sociais que condicionam e formam o cenário onde uma mulher se insere como mãe. É um conjunto de práticas sociais que levam as mulheres a uma maternidade não pensada, que faz com que elas acreditem que o caminho biológico da mulher é ser mãe. Então, elas têm esses filhos sem pensar se antes de tudo isso elas estão prontas e, mais importante, se elas querem ser mães. E se querem, por que querem?
Ora, eu me pergunto: quem se importa de verdade com a solidão da mulher solteira, sem filhos, com 40 anos, vista por toda uma sociedade como uma mulher assustadora e perigosa? Quem quer ser amiga dessa mulher hoje em dia? Quem as contrata? São julgadas o tempo todo como volúveis. Sem lastro. Aquela que não dá satisfação a ninguém (leia-se a um homem, seja marido, chefe, pai, irmão). Aquela sem compromisso. Aquela que já não é tão novinha, está na meia idade ou chegando à velhice iminente (etarismo). Julgadas por ter liberdade demais, a vida delas, no senso comum, está supostamente muito maravilhosa. Quem as convida para almoçar aos domingos com as famílias? Quem está do lado delas quando estão doentes para fazer um chá? Quem se importa com essas mulheres de verdade?
Quando a mulher é mãe, ela automaticamente adquire o respeito social, afinal “ela tem com o que se ocupar na vida”, mas quando a mulher é solteira sem filhos, a coisa muda bastante de figura. A sociedade pensa ‘olha só que absurdo, que mulher má, essa mãe que não quer ser mãe’, no caso das arrependidas. Ou pior, ‘essa mulher é má pois não sonha em ser mãe’. Negar a maternidade é motivo de ataques e julgamentos inclusive vindos de outras mulheres.
Lazer e maternagem combinam?
Eu caí de paraquedas em um encontro de mães numa certa tarde de domingo. Uma mulher, que é mãe, estava com a tarde livre e queria dançar e conversar ao som de ritmos latinos. Para minha surpresa, ela também convidou para o mesmo programa outras amigas mães. Todas que eu não conhecia. Obviamente e infelizmente, o papo se resumiu a filhos, relatos diversos da vida muito sofrida delas e a falar mal de homem. Dos ex-maridos. Uma delas inclusive contou que bancou financeiramente a vida de casada com um homem que não trabalhava por cinco anos porque ele era o pai da criança. Ninguém foi para a pista de dança naquele dia.
Em solidariedade permaneci ouvindo. Não queria parecer mal educada, a diferentona que se ausenta da mesa para dançar reforçando o lado libertino da mulher solteira aos 40 anos sem filho. Me integrei à roda de mulheres, mesmo a contragosto uma vez que minha vontade era dançar ritmos latinos quando saí de casa.
Uma criança chorava bastante na mesa ao lado durante o tempo que estivemos lá. Em dado momento o assunto da nossa mesa foi estendido para a mesa ao lado onde havia outras duas mães de filhos pequenos, uma delas disse que tinha três e achou ok levar a menor de 2 anos para passar o dia no bar onde o pai da criança trabalha de garçom. A criança tinha passado a tarde toda incomodada e chorando de tempos em tempos. Essas mães da minha mesa iniciaram então diversas tentativas de fazer parar de chorar a criança. Ou seja, mesmo no tempo livre delas, resolveram bancar a cuidadora de crianças alheias. Tudo em prol do senso de comunidade. Aquela história da aldeia que deve se responsabilizar por toda e qualquer criança, sabe?
Acho louvável o espírito de comunidade e fraternidade, toda sociedade deve ser sim um pouco responsável pelas crianças que existem entre nós. Não é esse o ponto. Mas para mim, quem pariu Mateus que o balance. E não sou obrigada a ficar cuidando de crianças em um bar aonde fui para me divertir. Ou eu sou muito egoísta e involuída ou essa gente é viciada em cuidar e reclamar de cuidar se fazendo de vítimas o tempo todo.
Existem ainda aquelas que se autodefinem “mães” por excelência, logo após dizer o próprio nome. Quase que uma extensão automática do que elas são, enquanto seres constituídos. Já me deparei com inúmeras Bios pela internet afora de mulheres que se apresentam dizendo o nome delas, mãe de fulano e betrano, e só depois descrevem os grandes feitos de suas vidas e o quão maravilhosas elas são como pessoas e profissionais. Gente! A maternidade surge muito depois de tudo isso. Pelo AMOR das DEUSAS! Vocês fizeram coisas incríveis antes de serem mães e são pessoas há muito mais tempo no mundo do que a chegada dos filhos. Parem de colocar o fato de ser mães na frente daquilo que vocês são em essência. Apenas PAREM!
Merecemos seu respeito, afeto e amizade
Ainda bem que não estou sozinha nessa. Vi outro dia uma postagem cômica que tentava reproduzir a sensação de uma mulher que escolheu não ter filhos em meio a tantas outras mães. Os comentários são variados, mas alguns chamam atenção. Uma mulher escreveu: “me sinto plena”, e outra “graças a Deus que escolhi assim”.
Há muitas de nós que estão bancando e assumindo a escolha de não ter filhos por motivos variados e o primeiro deles é o fato de que o mundo está acabando, literalmente as condições de vida na terra estão cada dia mais reduzidas com a crise climática apontando um aquecimento de 4 graus até o fim desse século. As próximas gerações, caso possam sobreviver, tendem a sofrer bastante com essa realidade. Outros fatores são as questões econômicas e a instabilidade profissional que muitos adultos vivem. A realização cada dia mais distante de ter uma casa própria e a vontade de tentar viver uma vida mais voltada para o autocuidado e realizações pessoais, aqui e agora no presente.
O problema é quando, mesmo com tantas razões para não fazê-lo, algumas pessoas escolhem ter filhos e usam isso em benefício próprio para se autopromover ou conseguir benevolência da sociedade, se colocando em um lugar superior por isso perante outras mulheres e sempre se fazendo de coitadas, sofridas, afinal, são mães né? Os demais seres humanos têm a obrigação de dar um desconto. Sabe como é. São mães.
Por medo de rejeição social, muitas mulheres mães acham OKEI praticar rejeição contra outras que negaram a maternidade por escolha. A penalização social é um fato irrefutável. Por um lado, existe o prazer de muitas mulheres quando castigam a ‘pecadora’ que refutou o gesto sublime que é gerar uma vida, e, por outro, o fato de que muitas se calam ou criticam pelo temor de serem elas mesmas o alvo do que os outros vão dizer se consentir e aprovar a não maternidade ou o arrependimento de ser mãe em público.
Agora, dos homens que se arrependeram de ser pais ninguém fala. O Brasil é o país com maior índice de mães solo sustentando famílias inteiras e maior índice de filhos sem registro de paternidade. Evasão parental que chama. Sim, se for homem e se arrepender, tudo certo! Um homem não é julgado da mesma maneira por repensar a paternidade. Não se considera algo tão reprovável, nem tão aberrante, nem tão antinatural como no caso de uma mulher. Além disso, se um homem compartilha o sentimento no seu ambiente, geralmente é entendido, e raramente é criticado.
Quero saber quem dessas heroínas santificadas mães daria conta de sustentar a solidão que vive uma mulher solteira e sem filhos na idade de 40 anos. Qual delas têm a coragem de não aceitar qualquer homem só para dizer que não ficou para titia. Qual delas têm a coragem de questionar o desejo de ser mãe motivado por puro medo de envelhecer sozinha ou pior, para ter quem cuide delas na velhice. Ou pior ainda para projetar autorrealização nos filhos.
A não maternidade é um ato político de muito mais coragem e força do que a escolha clichê de ser mãe, seguindo exatamente o padrãozinho que se espera de toda mulher nesse mundo capitalista que precisa de mão de obra para explorar e se manter. Verdades inconvenientes, mas pergunte a uma mulher por que ela quis ter filho que arrisco afirmar a resposta não será nada nobre. Se forem realmente honestas e francas com elas mesmas, os motivos sempre giram em torno de profundo egocentrismo.
Mas tá aí algo que nunca saberemos, pois depende de as mulheres mães dizerem a verdadeira motivação. E quem tem a coragem de assumir as inseguranças que as motivaram? Tenho quase certeza que nenhuma vai reconhecer sem disfarces que a maternidade não é o ápice da autorrealização. Para algumas mulheres, ter rebento, longe de ser o estado ideal com que toda mulher sonha (e é melhor que sonhe mesmo), revelou-se algo odioso e frustrante.
A maternidade é um empreendimento de alto risco, sem reconhecimento e sem retorno. Apesar de tudo, existem mulheres que conseguiram enxergar os tentáculos da maternidade compulsória sobre elas e escaparam de uma vida de arrependimento. Para elas, ainda resta o julgamento social sobre ser uma mulher sem filhos. Ainda bem que existe laqueadura para mulheres sem filhos garantida por lei (Lei 14.443/2022), um avanço na garantia de direitos sexuais e reprodutivos, embora tentem desvencilhar a mulher que deseja seguir com o procedimento.
Outro depoimento encontrado pela minha pesquisa foi o de Joseina, técnica em informática e biomédica. Para consumar a vontade de não ter filhos, decidiu fazer uma laqueadura. “Eu já tinha 40 anos, a época de ter filhos já foi, e mesmo assim os médicos não quiseram fazer”. Ao visitar o consultório de uma médica, escutou que precisava da autorização de freiras do local. “Dá para acreditar? Fiquei mais assustada porque era uma mulher me dizendo isso. Eu não tenho que pedir autorização para ninguém, a única conta que eu devo prestar são as legais, que estão na constituição, e isso eu tinha, mesmo assim foi muito complicado”, disse.
Apesar da resistência, a biomédica concluiu a laqueadura, depois de obter ajuda de uma advogada especializada em direito reprodutivo. Sem qualquer chance remota de engravidar hoje em dia, recaiu sobre ela outro questionamento. “Você não se arrepende?”. Ela responde com convicção: “As pessoas acham que não ter filhos me afeta psicologicamente, mas é o contrário. Foi justamente depois da decisão que eu me libertei, vi meus limites e me aprofundei em mim mesma”, finaliza, em paz.
É muito comum naturalizar o julgamento sobre as mulheres pelo que elas pensam ou deixam de pensar. Fazem ou que deixam de fazer. Sentem ou deixam de sentir. “Você vai se arrepender!” – é o que ouve por aí toda mulher que decide não ser mãe. Mas jamais é permitido se dizer arrependida depois de ter colocado um filho no mundo, jamais há espaço para admitir que a escolha pela maternidade foi um erro, não há espaço para mudar de opinião, lamentar ter se deixado levar pelas circunstâncias ou pelas convenções sociais que apontam que esse é o “caminho natural” a ser trilhado por uma mulher, o “próximo passo” depois do casamento, a decisão acertada devido ao tal “relógio biológico”, que está pressionando. O senso comum que classifica a maternidade como o passaporte para a família feliz, perfeita e completa, tende a rotular as mulheres que descartam a maternidade como cruéis. Mas não são. Elas merecem seu respeito, afeto e amizade. E sim, existem mães arrependidas que tiveram e amam seus filhos, mas odeiam ser mães e precisamos falar sobre isso.
Durante a pesquisa para escrever esse texto me deparei também com o trabalho genial da atriz Karla Tenório, que escreveu uma peça de teatro com o título “Mãe Arrependida“, a quem eu escrevi um depoimento que ela usou para dar mais visibilidade ao tema. Publicado em seu Instagram, o depoimento mostra que existe uma tensão oculta entre as mulheres mães e não mães, quando na verdade o inimigo é outro, ou deveria ser.
Nós precisamos falar da maternidade compulsória. Ser mãe tem de ser uma escolha. Algo muito bem pensado. Como são corajosas todas as minhas amigas que, assim como eu, não desejam ser mães e que conseguem se posicionar e dizer o que até então parecia indizível. Elas são fortes o suficiente para dizer ao mundo, à família e à própria mãe que a maternidade pode ser linda, mas não é para elas.
Outrora queimamos mulheres vivas apenas por serem sábias e as acusamos de bruxas. Hoje, a fogueira da modernidade é o cancelamento. E o alvo continua sendo as mulheres. Principalmente as mães arrependidas e aquelas que sustentam todos os dias a escolha de não ter filhos carregada de rejeição social. Precisamos falar sobre isso e desconstruir o contorno heroico entorno de maternidade. Nenhuma mulher é superior à outra por ser mãe, nenhuma mãe é mais mulher que a outra, mais preenchida, mais realizada. Ninguém merece uma medalha por ser mãe. Essa é uma visão que serve à competição entre mulheres, algo que está a serviço do patriarcado e do capitalismo. Parem de rotular as mulheres que enfrentam isso a ponto de suportar todo o peso e a cobrança social de não serem mães.
A maternidade será desejada ou não será!
Referências pesquisadas para esse artigo:
Esgotadas – Think Olga https://lab.thinkolga.com/esgotadas/
Podcast Café da Manhã – Folha de São Paulo – O que dizem as pesquisas sobre a sobrecarga das mulheres
https://open.spotify.com/episode/5irGhO3bRe2azCqdGXuMOj?si=ZDE-II4tQnahmFEtcqRngw
Greve de Mulheres na Islândia – UOL https://www.youtube.com/watch?v=5NkeQis17cs
Greve de Mulheres na Islândia – Mídia Ninja https://www.instagram.com/reel/Cy5J_1TAI_q/?igshid=MTc4MmM1YmI2Ng%3D%3D
Gravidez forçada – Coletivo Juntas https://www.instagram.com/p/Cy4KX84vYUM/
Gilead | entenda a história e a geopolítica em “o conto da aia” https://gavetadebaguncas.com.br/gilead-historia-geopolitica-conto-aia-handmaids-tale/
Violência Doméstica na gestação e pós -parto – Azmina https://azmina.com.br/reportagens/violencia-domestica-na-gestacao-e-pos-parto/
Mudança nas regras para laqueadura e vasectomia entra em vigor – Cofen https://www.cofen.gov.br/mudanca-nas-regras-para-laqueadura-e-vasectomia-entra-em-vigor/
Sobre mães arrependidas:
Livro “Mães Arrependidas – uma outra visão da maternidade” Autora: Orna Donath