Uma cena marcante em minha infância é a cena de meu pai me sentando em seu colo e me dizendo que quando minha mãe havia ficado grávida ele queria que a criança fosse menino. Naquela época não havia exames modernos de imagens como temos hoje e era muito normal os pais ficarem esperando até o nascimento do bebê para saber o seu sexo. Pois bem, meu pai ficou até o último momento torcendo para que eu fosse um menino. Saber disso antes mesmo de meu irmão mais novo nascer, de alguma maneira, moldou a minha personalidade. Azar do papai que teve que aturar durante muito tempo minha insistência para que ele me levasse a caçar tatu, coisa que só os pais de filhos homens fazia. Ao final, ele acabou se rendendo e lá fui eu toda orgulhosa de ser “o menino” que meu pai tanto queria.
Acontece que mal sabia eu que tal realidade não se muda com um ou dois tatus no embornal de couro. Meus problemas estavam só começando! Logo percebi que eu não podia me sentar de qualquer jeito, tinha sempre que fechar as pernas. Caso contrário levava um beliscão ou qualquer reprovação da minha mãe ou das minhas tias. Também não podia ficar muito alegre ou empolgada com alguma coisa porque senão me taxariam de “assanhada”, algo que nada tinha a ver com o meu cabelo ou com o jeito que ele estava penteado.
Entretanto, eu me fiz valer de algum modo. Subi em árvores, andei a cavalo, nadei na enxurrada dos temporais de verão, e briguei de porrada para defender meu irmão dos meninos maiores do que ele na escola. Também aprendi dançar forró com meu pai, que me levava aos arrasta pé noturnos e onde eu tocava triângulo com a banda de velhinhos. Tudo bem, nem tudo estava perdido!
Porém, sendo eu a irmã mais velha, teria muitas mais responsabilidades do que meu irmão caçula, mas não por ele ser menor, mas sim por ele ser homem. Sempre fiquei a imaginar se ao contrário de um menino, minha mãe tivesse se engravidado de outra menina, as divisões pelas mesmas tarefas domésticas seriam tão diferentes.
Uma pesquisa recente (maio 2014) realizada pela Plan International Brasil mostrou que tarefas como as de limpar a casa, lavar a louça e arrumar a cama são de 6 a 8 vezes mais realizadas por meninas do que por meninos nos lares brasileiros. Ao passo que “sair para trabalhar” é uma atividade realizada 12,5% por meninos e somente 4,3% por meninas. Isso é só um dos itens pesquisados que revela a raiz de nosso machismo cotidiano, da perpetuação dos dogmas de criação de meninos e meninas quando ambos são apenas crianças e assim deveriam ser tratados igualmente. A pesquisa ouviu um total 1931 meninas, na faixa etária entre 6 e 14 anos.
Não me lembro de ver minha mãe tirar meu irmão de suas brincadeiras para aprender a fazer arroz, cozinhar carne moída ou lavar roupa à mão no tanque. Jamais presenciei essa cena. Sequer a vi ensinar a ele como se usava uma vassoura. Acho que foi por esse motivo que desenvolvi certa birra de lavar a louça dos outros, de lavar a roupa dos outros e de fazer qualquer coisa para os outros que não fosse para mim mesma. É claro que eu ajudava a minha mãe, mas muito à contra gosto, é verdade. Ela que trabalhava fora e sempre sustentou a casa praticamente sozinha com seus três empregos de professora que quase a impedia de ver os filhos diariamente. Quando eu acordava para ir à escola o café a manhã já estava posto e minha mãe já estava correndo para o ponto do ônibus para não se atrasar na entrada dos alunos. Meu pai? Bem, nos primeiros anos ele até me levou à escola algumas vezes, ora de bicicleta, ora caminhando. Mas a verdade é que ele ajudava bem pouco a minha mãe no dia a dia da criação dos filhos. Ele, um cabra macho do Rio Grande do Norte, nortista como diriam alguns, não se via fazendo tarefas domésticas. Imagina!
O que isso tem a ver com personalidade? Tudo, ora bolas. Durante anos e anos eu via o quão desigual era a divisão de tarefas entre minha mãe e meu pai, durante anos eu me revoltei por ter que reproduzir esse modelo em casa e briguei muito com meu irmão por conta disso. Era até natural que essa menina que vos fala agora repetisse para si mesma e para quem quisesse ouvir que ela jamais se casaria. Só de imaginar viver tudo aquilo no futuro eu já entrava em pânico!
É claro que minha vida foi até bastante boa em comparação a tantas outras meninas que vivem na pobreza, sem acesso à educação, ao amor e aos cuidados dos pais. Para se ter uma ideia do quão desigual é o nosso país na sua distribuição de renda, no acesso à informação e no reflexo disso para a educação, evolução e crescimento de suas meninas, vejamos alguns dados da pesquisa: a proporção de meninas de escolas particulares que disse desempenhar atividades domésticas é menor do que o observado nas escolas públicas (rurais e urbanas). Enquanto cerca de 43% das meninas/adolescentes de escolas públicas disseram cozinhar, 32,5% das estudantes de escolas particulares urbanas o fizeram. Outros exemplos:
- 67,1% das meninas de escolas particulares urbanas declararam lavar louça. Nas escolas públicas rurais esse percentual foi de 81,5%;
- 46,6% das meninas/adolescentes de escolas particulares urbanas informaram limpar a casa. Nas escolas públicas rurais o percentual sobe para 74,3% e nas públicas urbanas para 67,6%.
Ou seja, se você considerar que meninas que estudam em escolas privadas são as de maior poder aquisitivo, podemos concluir que quanto mais pobre a menina é, mais tarefas domésticas e responsabilidades lhes são atribuídas todos os dias de sua vida.
Acredito que tudo está interligado e somos aquilo que vivemos. Por ser menina, um dia eu quis ser menino. Por ser menina eu vivi poucas e boas e tive que receber muitos rótulos e peitar muita gente para ser quem sou hoje. Talvez não tenha sido em vão a minha saída de casa tão precoce para os modelos atuais. Saí com 18 anos quando hoje em dia é muito comum ver jovens com mais de 30 anos morarem com seus pais. Meu irmão ainda está lá.
Fonte: A Plan International Brasil é uma organização não-governamental humanitária, sem filiação política ou religiosa, presente em 70 países. No Brasil desenvolve projetos desde 1997. Mais informações: www.plan.org.br
#PorSerMenina é uma campanha mundial da Plan International para promover os direitos das meninas e contribuir para tirar milhões delas da zona de pobreza, por meio da educação e do desenvolvimento de habilidades.
Para saber mais acesse:
Texto escrito originalmente em 30 de setembro de 2014 em função do DIA Internacional das Meninas – 11 de outubro.